sexta-feira, 9 de abril de 2010

A gente se acostuma



"Eu sei que a gente se acostuma." Mas não devia...

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ter outra vista que não sejam as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não subir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltada porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo. A comer sanduíches porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar na condução porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.

A gente se acostuma a esperar o dia todo e ouvir no telefone não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.

A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios.A ligar a televisão e assitir os comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na rua infindável dos produtos.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e pelo que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E saber que cada vez pagará mais. E a procurar trabalho, para ganhar mais dinheiro para ter como pagar mais coisas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. As bactérias de água potável. A contaminação de água do mar. A lenta morte dos peixes nos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha os pés e sua no rosto e no corpo. Se o trabalho foi duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre o sono atrasado.

A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele, se acostuma para evitar sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar a vida que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto se acostumar, se perde em si mesma.


Clarice Lispector

6 comentários:

Unknown disse...

Oi Fernanda! Perfeito post pro meu momento de vida agora... continua sempre postando que os textos são ótimos. Beijos pra ti e os filhotes! Felipe

Fernanda Eick disse...

Oi meu amigo querido!
Sabemos que nada é por acaso né, e que na maioria das vezes somos meros instrumentos, utilizados pelos anjos da guarda, que desejam transmitir um recadinho.
abração e aufagos no meu aumiguinho Billy "boy".

Sandra disse...

Tão verdadeiro!

Nídia e Patrícia Martins disse...

Oi Fernanda.. td ?

Eu (Patrícia) adoro os textos de Clarice Lispector... mas tem um que é muito lindo : "Há momentos". Este me emociona.
Não sei se conhece ?
Um bom fim de semana...
Abraços !!!!

Fernanda Eick disse...

Olá Patrícia!
"Há momentos", é um texto profundo e de muita sensibilidade.
Ótima sugestão. Já está na minha lista.
1 abração

Fernanda Eick disse...

Sandra!!
Adorei o "destino" que destes aos teus sapatos de casamento e aos sapatinhos do teu bebê. Uma reciclagem original, criativa e útil que se transformou numa eterna recordação. Estou aguardando as novidades...
1 abração